06/09/2024
Bioeconomia: circular por natureza
Prof. Edson Grandisoli
Coordenador educacional e embaixador do Movimento Circular
Um dos grandes desafios (talvez o principal) que se coloca à frente da humanidade nos últimos séculos é como garantir desenvolvimento socioeconômico a partir de práticas que conservem e regenerem os ambientes naturais. Muitos modelos têm sido propostos e discutidos nessa direção como a economia verde, o pagamento por serviços ambientais, o manejo florestal sustentável, a economia circular, a bioeconomia, entre outros.
Dentro desse panorama complexo dos pontos de vista conceitual e prático, a Bioeconomia e a Economia Circular se apresentam como dois pilares fundamentais na construção de um modelo econômico mais sustentável, resiliente e inovador. Ambos os conceitos visam transformar a maneira como nos relacionamos com os ambientes naturais, produzimos, consumimos e descartamos, estimulando o uso eficiente de recursos, a redução de desperdícios e a conservação do meio ambiente. A Bioeconomia e a Economia Circular oferecem oportunidades únicas para reconfigurar setores produtivos, estimular a inovação e reduzir os impactos ambientais. Para discutir um pouco sobre esses dois modelos, leia atentamente as definições a seguir.
Bioeconomia | Economia Circular |
Modelo econômico baseado na utilização de recursos biológicos renováveis, como plantas, animais, microorganismos e biomassa, para produzir alimentos, energia, materiais e produtos químicos de forma mais justa e sustentável. Invés de depender de recursos fósseis e não renováveis, por exemplo, a bioeconomia promove o uso de matéria-prima biológica, aproveitando os avanços da biotecnologia, da agricultura de precisão e da bioengenharia. Isso não apenas contribui para a redução das emissões de gases de efeito estufa, mas também estimula a geração de empregos e o desenvolvimento econômico justo e inclusivo de comunidades locais. | Modelo que visa fechar o ciclo de vida dos produtos, prolongando seu uso, reutilizando materiais, reciclando e minimizando a geração de resíduos. Diferente do modelo linear tradicional de "extrair, produzir, descartar", a economia circular visa promover um sistema regenerativo onde os materiais são constantemente reaproveitados e reintegrados ao processo produtivo. Isso é alcançado por meio de estratégias como reciclagem, remanufatura, reparo, reutilização e design sustentável. A economia circular busca, essencialmente, reduzir a pressão sobre os recursos naturais, diminuir o impacto ambiental e eliminar a geração de lixo. |
Você consegue estabelecer paralelos e similaridades entre estes dois modelos?
As mútuas inspirações entre a Bioeconomia e a Economia Circular.
A bioeconomia e a Economia Circular são claramente conceitos relacionados, mas surgiram em contextos históricos e tempos diferentes, refletindo abordagens distintas, porém complementares, para sustentabilidade e uso de recursos.
O conceito de Economia Circular começou a ganhar mais forma nas décadas de 1970 e 1980, com raízes em ideias como a ecologia industrial e a economia do desempenho, que são abordagens relacionadas ao uso mais eficiente de recursos, minimização de impactos ambientais e a transformação de sistemas econômicos. Já o conceito de bioeconomia começou a ganhar destaque um pouco antes, nos anos 1960 e 1970, com o avanço das biotecnologias, ou seja, um pouco antes da ideia de Economia Circular.
Apesar dessa diferença temporal, ambas as ideias têm evoluído em paralelo, influenciando-se mutuamente em alguns aspectos devido à busca por modelos econômicos mais sustentáveis. Ambas as abordagens são inspiradas por princípios ecológicos e pela necessidade de se afastar do modelo econômico linear (“extrair, produzir, descartar”) em direção a sistemas mais circulares, resilientes e sustentáveis. Ciclo fechado, reciclagem/reutilização de resíduos, o uso de fontes renováveis de energia e a regeneração, por exemplo, são abordagens comuns aos dois, ainda que aplicadas de maneiras diferentes.
Considerando-se esse panorama histórico-conceitual, é possível afirmar que as práticas de uso sustentável de recursos biológicos (dentro da bioeconomia) complementam e reforçam os objetivos da Economia Circular. O uso de biomassa para produção de energia ou o advento dos bioplásticos são exemplos que se encaixam nos dois modelos. A economia circular, portanto, tem integrado práticas de bioeconomia ao propor o uso eficiente de resíduos biológicos e materiais orgânicos, transformando-os em novos produtos e contribuindo para a regeneração de sistemas naturais.
Talvez uma das melhores representações das mútuas influências entre bioeconomia e Economia Circular seja o gráfico de borboleta inspirado no modelo “do Berço ao Berço” idealizado por Braungart & MacDonough, em 2002.
No site dos nossos parceiros do Ideia Circular, pode-se ler que:
“O design Cradle to Cradle (C2C ou do Berço ao Berço) define uma estrutura para a criação de produtos e processos industriais inspirados nos sistemas naturais, que funcionam em fluxos cíclicos de materiais seguros e saudáveis para os seres humanos e natureza. Na natureza, os resíduos sempre podem se tornar alimentos para próximos processos. Num sistema Cradle to Cradle, materiais são criados e empregados diferenciando a biosfera da tecnosfera, criando assim dois ciclos industriais distintos.”
Ao focar na utilização inteligente de recursos biológicos e na redução de desperdícios, as abordagens promovem um ciclo virtuoso de produção e consumo, capaz de enfrentar os desafios ambientais globais e, ao mesmo tempo, fomentar um desenvolvimento mais inclusivo, justo e sustentável. Em resumo, a bioeconomia é circular por natureza, em sua essência, e tem inspirado (e está sendo inspirada) pelas ideias de inovação trazidas pela Economia Circular.
Coevolução e síntese entre os conceitos
A análise da evolução dos conceitos e abordagens ligados à necessidade de desenvolver e conservar é sempre surpreendente e amplia nossa visão sobre as ações no presente. Cada um à sua maneira, os modelos de bioeconomia e Economia Circular dialogam com as ideias e premissas da Economia Ecológica, conceito que começou a ser construído a partir das contribuições de Kenneth Boulding (1966) e, em especial, de Nicholas Georgescu-Roegen em seu livro "The Entropy Law and the Economic Process".
Nele, Georgescu-Roegen argumenta que a economia não pode ser vista como um sistema fechado, onde os recursos podem ser reutilizados infinitamente sem perdas, porque todo processo econômico gera entropia, ou seja, perda irreversível da qualidade dos recursos. Ele também foi um dos primeiros a criticar a ideia de crescimento econômico ilimitado, um conceito central da economia tradicional. Georgescu-Roegen destacou que o crescimento contínuo é insustentável devido à finitude dos recursos naturais e aos impactos socioecológicos.
O campo da economia ecológica, entretanto, só começou a se consolidar como uma disciplina específica na década de 1980. Em 1989, foi fundada a Society for Ecological Economics (ISEE) e, em 1989, também foi lançada a revista Ecological Economics, que se tornou um importante veículo para a disseminação de ideias nesse campo.
Apesar de elegantes e essenciais do ponto de vista de reflexão, a economia ecológica, e todas as ideias e modelos que dialogam com esse campo, para alcançarem seus objetivos ligados a um desenvolvimento mais justo, inclusivo e ambientalmente correto em sua totalidade, demandam mudanças de cultura, valores e propósitos de forma articulada considerando-se todas as dimensões e sujeitos sociais. Essa tarefa parece cada vez mais complexa dentro de um modelo que historicamente tem gerado cada vez mais exclusão e desigualdades.
Confira alguns exemplos da bioeconomia pelo mundo:
- Brasil
O Brasil, desde junho de 2024, conta com a Estratégia Nacional de Bioeconomia, que orienta a promoção de produtos e processos sustentáveis que utilizem recursos biológicos e novas tecnologias.
O Pará, situado na Região Norte, inclusive, possui um Plano Estadual de Bioeconomia e é um dos estados brasileiros que se destaca na bioeconomia brasileira, através da produção de dois produtos-chave: a Castanha-do-Brasil (ou Castanha-do-Pará) e o Açaí.
Por exemplo, em 2022, a produção nacional de açaí - fruto nativo da Amazônia - contou com a contribuição de 14 estados brasileiros. E o Pará se destacou significativamente, ao produzir 1,7 milhão de toneladas - cerca de 90,4% da produção total do fruto. Os dados são da Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (Fapespa). O cultivo sustentável do açaí contribui para a conservação ambiental e o desenvolvimento socioeconômico. Outros dados afirmam que, no Brasil, entre 1987 e 2022, a produção de açaí saltou de 145,8 mil para 1,9 milhão de toneladas - um aumento de mais de 13 vezes em um período de 36 anos.
Ao mesmo tempo, a castanha-do-brasil também se destaca na bioeconomia brasileira. Em 2022, o Pará foi o terceiro maior produtor de castanha no país, com mais de 8,8 mil toneladas, gerando um valor superior a R$ 31 milhões em produção. A coleta e processamento da castanha envolve comunidades locais e cooperativas, que praticam o manejo sustentável das castanheiras. Este modelo não apenas gera renda e preserva a floresta amazônica, mas também estimula a regeneração natural e evita o desmatamento.
Além de tudo isso, o Pará está se preparando para sediar a 30ª Conferência das Partes sobre Mudanças Climáticas da ONU (COP30), que ocorre na capital, Belém, em novembro de 2025.
- EUA
O principal foco da bioeconomia nos Estados Unidos está atrelado à tecnologia. O governo estimula a substituição de recursos não renováveis por biotecnologias, com destaque para os biocombustíveis e bioplásticos; através de parcerias público-privadas e programas como o BioPreferred Program. Gerido pelo Departamento de Agricultura dos EUA (USDA), este programa gere as diretrizes de compra obrigatória para agências federais e oferece uma rotulagem voluntária para produtos biológicos certificados - que são alternativas aos derivados de petróleo.
- União Europeia
Na União Europeia, o foco da bioeconomia está em setores como agricultura e florestas, visando atingir a neutralidade de carbono e proteger a biodiversidade. O destaque fica com a Empresa Comum para uma Europa Circular de Base Biológica - parceria público-privada criada em 2021 para financiar e acelerar a inovação em bioindústrias sustentáveis. Com sede em Bruxelas, a empresa procura substituir matérias-primas fósseis por renováveis e fortalecer economias locais, viabilizando iniciativas em áreas como químicos bio-based, embalagens, alimentação e cosméticos, proteção de culturas, ferramentas digitais, têxteis, políticas e conscientização, e polímeros e plásticos bio-based.