
23/07/2025
Comunidades amazônicas e circularidade: novos-seculares modos de viver com a floresta
Prof. Dr. Edson Grandisoli*
Com colaboração de Paula Couceiro Usi**
Navegando pelo Rio Acutipereira você não vê, mas ela está lá, no meio da várzea. É preciso um barqueiro experiente para chegar à Comunidade Santo Ezequiel Moreno, em Portel, no estado do Pará, parte do Projeto Estadual de Assentamento Agroextrativista (Peaex) Acutipereira.
A chegada à comunidade, por um estreito caminho de água em meio à vegetação, impressiona pelas cores e pela beleza das palafitas. Isso sem falar dos sorrisos e da emocionante acolhida das pessoas que moram ali. Já sabia que seria um dia muito especial e de muitos aprendizados.
Chama a atenção logo na chegada relação do ribeirinho com a água. Entrar no rio dispensa qualquer tipo de cerimônia. Uma hora se está fora da água, outra está dentro. Isso parece cada vez mais sábio em um lugar onde a sensação térmica chega facilmente aos 42oC – quase todos os dias.
A água e a floresta de várzea - com seus incontáveis pés de açaí - não fazem parte da paisagem. Eles são a paisagem, e tudo que está ali é também parte das pessoas. Essa relação de proximidade, respeito e cumplicidade com o ambiente tem se tornado cada vez mais rara, e compreender a existência e persistência de outros modelos de civilização e desenvolvimento é chave para as presentes e futuras gerações, em especial em momentos de policrises socioambientais.
A bioeconomia é parte indissociável da Comunidade Santo Ezequiel Moreno. Mesmo antes deste termo ser criado, o uso sustentável e responsável dos recursos mostra a preocupação em manter a floresta viva, e não somente de pé. Graças ao apoio de diferentes parceiros como a Embrapa, a União Europeia, o Sebrae/PA, o IPAM (Instituto de Pesquisa Amazônia) e o CIRAD (Centro de Cooperação Internacional em Pesquisa Agronômica para o Desenvolvimento) que no âmbito do projeto Sustenta e Inova, que integra a iniciativa global DeSIRA, técnicas ancestrais de cultivo e manejo combinadas ao conhecimento científico moderno, melhorando e potencializando o uso de recursos, tais como açaí.
O projeto Sustenta e Inova é uma das iniciativas que acontecem na comunidade e que merece destaque, a atuação conjunta do projeto, que, por meio de um modelo de co-inovação, articula saberes locais e científicos para transformar a cadeia do açaí em uma referência de sustentabilidade e inclusão socioeconômica. A comunidade participa ativamente do desenvolvimento e validação de boas práticas de manejo, desde o campo até a comercialização, fortalecendo a cadeia produtiva de forma resiliente. A presença de mulheres e jovens em atividades de capacitação, experimentação e gestão tem ampliado o protagonismo local e promovido novas perspectivas econômicas.
Além disso, o projeto incentiva práticas de economia circular, como o descarte correto, o reaproveitamento de resíduos do processamento do açaí em compostagem e adubação de quintais produtivos, e fomentar espaços de governança compartilhada para tomadas de decisões coletivas. A experiência da comunidade de Santo Ezequiel Moreno ilustra como alianças entre organizações de pesquisa, governos, sociedades civil e produtores podem gerar inovações que respondem aos desafios socioambientais globais criando um ambiente mais propício à transição sustentável da Amazônia.
Essas ações colaborativas não só fortalecem a bioeconomia local como também promovem a transição para sistemas produtivos sustentáveis e inclusivos. Através de processos participativos de pesquisa e inovação, comunidades, pesquisadores e instituições públicas e privadas trabalham em conjunto para gerar soluções adaptadas às necessidades locais e capazes de promover desenvolvimento socioeconômico com conservação da natureza abundante da várzea amazônica.
Mas os desafios ainda são muitos
O desmatamento e as queimadas são ameaças históricas e permanentes no tecido amazônico, o que coloca nosso país entre os primeiros colocados em termos de emissões de gases de efeito estufa. Buscar caminhos efetivos para um desmatamento zero, associados a uma profunda renovação nas formas como desenvolvemos nossas atividades agropecuárias, permitiria ao Brasil reduzir cerca de 75% suas emissões brutas. Talvez seja o único país do mundo com esse perfil e oportunidade, o que nos colocaria na vanguarda dos processos de mitigação e modelo de desenvolvimento sustentável e circularidade para todo o mundo. A prova de que isso é possível está justamente no coração do Marajó, em suas comunidades ribeirinhas e sua eterna conexão de dependência e admiração pela floresta.
A primeira vez que pisei na Amazônia foi em 1996, enquanto era ainda estudante de mestrado no Departamento de Ecologia do Instituto de Biociências da USP, em São Paulo. Desde então, já tive a oportunidade de atuar na região por mais de 10 anos. Apesar das experiências, a Amazônia e seus povos sempre me surpreendem pela criatividade e resiliência. A união de saberes parece cada vez mais urgente para garantirmos a conservação da sociobiodiversidade amazônica.
Tenho dito isso há anos: todo brasileiro tem que conhecer a Amazônia. E não somente a floresta, mas aqueles que nela encontraram um lugar para viver (bem). Ela certamente mudou e ainda muda minha forma de ver, sentir e estar no mundo.
*Profº Drº Edson Grandisoli
Embaixador e coordenador pedagógico do Movimento Circular, é Mestre em Ecologia, Doutor em Educação e Sustentabilidade pela Universidade de São Paulo (USP), Pós-Doutor pelo Programa Cidades Globais (IEA-USP) e especialista em Economia Circular pela UNSCC da ONU. É também co-idealizador do Movimento Escolas pelo Clima, pesquisador na área de Educação e editor adjunto da Revista Ambiente & Sociedade.
**Paula Couceiro
Atua no Sebrae/PA coordenando projetos de cooperação internacional voltados ao desenvolvimento sustentável e à inovação, como Sustenta e Inova e AL Invest Verde, alinhados à União Europeia. Tem como principal competência a articulação de parcerias estratégicas que conectam diferentes setores e atores sociais, fortalecendo pequenos negócios e comunidades da Amazônia. Mobiliza recursos e iniciativas que integram bioeconomia, inovação e sustentabilidade, promovendo soluções colaborativas e impacto socioeconômico positivo na região.